As escolas de Shammai e Hilel
Nesta passagem, o divórcio aparece como pergunta capciosa dirigida à Jesus. “É permitido ao homem divorciar-se de sua mulher por qualquer motivo?” (19.3). Para os fariseus, ponto de partida é a lei de Deuteronômio 24.1-4, que, para proteger a mulher, ordena entregar-lhe uma carta de divórcio. Havia nos dias de Jesus, duas famosas escolas de interpretação rabínica, ou seja, a escola rigorista de Shammai e a liberal de Hilel. Ambas divergiam quanto aos motivos válidos para o divórcio. A primeira defendia que o divórcio somente era permitido em caso de infidelidade sexual da esposa.
Para Hilel, o “algo vergonhoso” na mulher, que justificaria o divórcio, conforme diz o texto da lei, poderia ser muitas coisas, desde um defeito físico, até não cozinhar direito.[1] Segundo Hilel, na prática o homem pode se divorciar por qualquer motivo. Portanto, a intenção maliciosa consiste em fazer a pergunta para induzir Jesus a declarar-se contra a lei de Moisés, ou a enfrentar uma das escolas de interpretação. Dessa maneira se pretendia diminuir a popularidade de Jesus, uma vez que somos informados que “grandes multidões o seguiam”.
O entendimento de Jesus sobre o divórcio
Jesus ao responder aos fariseus, não fundamenta-se em Shammai ou Hilel, mas vai direto à fonte da Palavra de Deus, para a ordem primordial estabelecida pelo Senhor (Gn 1.27; 2.24; 5.2). “Homem e mulher os criou”. Assim, o casamento é ideia de Deus, e não deveria ser desfeito pelo homem. Observemos que foi Deus quem disse: “Por esta razão …” (19. 5). Portanto, perguntas sobre casamento (como divórcio e novo casamento) devem ser respondidas por Deus, não pelo ser humano! Jesus enfatiza que no casamento, Deus cria uma unidade: os dois se tornam uma só carne (19.5-6; cf. Gn 2.24 2). Eis a matemática do casamento: 1 + 1 =1! Jesus conclui: “Portanto, o que Deus uniu, ninguém separe” (19.6). O indivíduo não tem o direito de separar o que Deus uniu, assim, parece claro que a intenção divina é que o casamento seja para a vida toda!
Não há exceções a esta norma bíblica? Sim, existe uma exceção: “Eu lhes digo que todo aquele que se divorciar de sua mulher, exceto por imoralidade sexual, e se casar com outra mulher, estará cometendo adultério” (19.9). O casamento só pode ser desfeito em caso de adultério (Ml 2.13-16; 1 Co 7.10-13). O termo grego em Mateus 19.9, que justificaria a separação é porneia, que significa fornicação, prostituição e relação sexual ilegítima.[2]
Jesus parece entender o casamento a partir da perspectiva da aliança. Então, a questão do divórcio relaciona-se com a possibilidade de quebrar uma aliança. Segundo David Atkinson, as alianças são uniões para a vida, “consumadas com base na sua permanência. Não podem ser desfeitas. Mas, às vezes, são”.[3] Embora Jesus certamente esteja afirmando que o padrão da criação é o casamento para toda a vida, também concorda com a lei de Deuteronômio, a saber: em uma sociedade pecadora, alguns casamentos são desfeitos. Isso pode ser visto pela expressão no Evangelho de Mateus: “exceto por imoralidade sexual”. A separação não é o ideal de Deus, mas pode ocorrer pela dureza do coração humano.
Uma quebra de aliança
Tendo o casamento para toda a vida, como o ideal da criação de Deus, e também considerando o modelo da aliança para compreendermos a natureza do casamento, não podemos deixar de mencionar a possibilidade do perdão e restauração, como resposta à quebra da aliança, do compromisso. Se Deus repetidas vezes perdoa, nós também devemos perdoar. Portanto, apenas quando em circunstâncias excepcionais, isso já não é mais possível é que a questão do divórcio como mal menor pode ser levantada.
É certo que, segundo a narrativa de Mateus, capítulo 19, a Igreja deve ser cautelosa a respeito de solenizar novos casamentos, e nunca deveria fazê-lo às pressas, sem bastante reflexão. Mas a tarefa dos discípulos de Cristo vai além disso. Precisam encontrar o equilíbrio entre a proclamação do ideal da criação para o casamento e tratar e orientar as pessoas com empatia e misericórdia em momentos de tragédia e sofrimento familiar.
“Nossa Lei”. A Lei de Moisés não dizia claramente por que motivo um homem podia mandar a sua esposa embora, e os mestres da Lei não concordavam na interpretação de Deuteronômio 24.1-4: “Se um homem casar-se com uma mulher e depois não a quiser mais por encontrar nela algo que ele reprova, dará certidão de divórcio à mulher e a mandará embora. Se, depois de sair da casa, ela se tornar mulher de outro homem, e este não gostar mais dela, lhe dará certidão de divórcio, e a mandará embora. Ou se o segundo marido morrer, o primeiro, que se divorciou dela, não poderá casar-se com ela de novo, visto que ela foi contaminada. Seria detestável para o Senhor. Não tragam pecado sobre a terra que o Senhor, o seu Deus, lhes dá por herança”.
[1] Na cultura judaica nos dias de Jesus, somente o homem poderia dar carta de divórcio, jamais a mulher.
[2] RUSCONI, Carlo. Dicionário do grego do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2003. p. 383.
[3] ATKINSON, David. Casamento e divórcio. In: KEELEY, Robin. Fundamentos da teologia cristã. São Paulo: Vida, 2000. p. 203.
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