O pai nosso

INTRODUÇÃO


O trecho do livro de Mateus que está entre os versículos 9 ao 15 do capítulo 6 apresenta aquela que se tornou a principal fórmula de oração da tradição cristã: a conhecida oração do Pai Nosso. Nela, Jesus Cristo apresenta uma espécie de “elementos essenciais” que devem fazer parte da agenda de oração dos seus discípulos e discípulas. Para compreender melhor essa oração é necessário levar em conta o contexto discursivo em que ela é apresentada. O contexto imediato é o discurso sobre “as práticas de justiça” – as esmolas, as orações e os jejuns – e o contexto geral é a série de proposições que Jesus estava realizando acerca das lógicas do Reino dos Céus.


Mateus está interessado em orientar os seus leitores acerca das práticas de justiça sob a perspectiva de Jesus, especificamente o modo como eles deveriam compreender, por exemplo, a oração. Além dos dois contextos mencionados acima, é importante compreender também outros dois aspectos culturais e religiosos comuns na tradição rabínica do tempo de Jesus. O primeiro é o fato de que era prática comum o ensino de fórmulas de oração, isto é, cada mestre geralmente ensinava seus discípulos a orarem.


O segundo aspecto é o fato de que a oração de um mestre (rabino) era a síntese de seu pensamento teológico e sua forma de interpretar a Torá. Portanto, a oração que um mestre ensinava aos seus discípulos apresentava suas principais compreensões sobre Deus, sobre o ser humano e suas relações.


1. Por uma prática relacional cheia de afeto e devoção


Seguindo essa mesma tradição, Jesus compõe sua fórmula de oração e a apresenta aos seus discípulos. Nesse sentido, a oração de Jesus é uma síntese do seu pensamento sobre Deus, sobre os seres humanos e sobre as principais questões que compõem a vida humana. Ao mesmo tempo, Jesus apresenta, à luz do Reino dos Céus, uma outra natureza da oração: não deveria ser uma vã repetição de fórmulas, mas uma prática relacional cheia de afeto e devoção. Jesus critica as repetições que seus contemporâneos faziam na oração, pelo fato de que a repetição afirmava que o interesse da oração estava na pessoa que estava orando. Nesse sentido, existe a tendência de que a pessoa que repete entenda que a eficácia da oração depende de quão longa sua prece seja e da maneira particular que ela tem de apresentar essa prece.[1]


Jesus compreendia que a oração deveria ser o oposto desse modelo.  Ela deveria ser a expressão da compreensão que temos acerca de Deus, de nós mesmos e da nossa condição no mundo. De igual forma, Mateus propõe esse mesmo caminho para os membros da comunidade à qual endereça seu escrito. A igreja mateana deveria compreender a prática da oração a partir do paradigma do Reino dos Céus e não mais a partir das muitas fórmulas produzidas pela tradição rabínica que muitas vezes propiciava a preocupação por uma visibilidade social em detrimento de uma vida espiritual profunda e segundo a vontade divina.


[1] PIPER, John. Em busca de Deus. São Paulo: Vida, 2009.


2. A compreensão eficaz da oração


A partir da análise das sessões que compõem a oração ensinada por Jesus, é possível compreender tanto a síntese do seu pensamento acerca de Deus, do ser humano e das questões fundamentais da história humana, bem como visualizar a trilha para realizar uma oração conforme a justiça do Reino de Deus. Assim, a primeira noção que Jesus apresenta na sua fórmula de oração é a fórmula onde Deus é santificado, então a vontade de d´Ele é feita na terra, tal como ela é realizada no céu. Com isso, a consciência que os seus discípulos deveriam ter era a de que a busca primordial de suas vidas deveria ser “santificar” o nome de Deus entre eles, pois só assim experimentariam a manifestação da vontade Deus entre eles. Esse é o primeiro aspecto que deveria mobilizar a oração dos discípulos e discípulas de Jesus.


A segunda noção apresentada na oração de Jesus é a condição vulnerável e necessitada do ser humano. Ao propor que deveríamos “pedir o pão de cada dia”, Jesus estava sinalizando sua compreensão acerca do ser humano: somos seres necessitados. A necessidade é a marca mais comum de todos os seres humanos. Somos necessitados tanto do pão físico quanto do pão espiritual; somos seres da falta, somos seres incompletos e insaciados. Ao mesmo tempo, somos seres caracterizados por uma enormidade de desejos que, de alguma forma, precisam ser realizados. Jesus ensina os seus discípulos a pedirem o pão, a pedirem aquilo de que necessitam, a solicitarem para Deus a realização dos seus desejos que permitem uma existência minimamente interessante.


A terceira noção é a compreensão que Jesus tem acerca da condição pecaminosa do ser humano. Por esse motivo, Ele ensina seus discípulos e discípulas a terem profunda compreensão de si mesmos/as como pessoas falhas. A partir desse fundamento, eles deveriam pautar suas relações pelo critério da misericórdia e paciência de uns para com os outros. Ao mesmo tempo, a consciência de que o perdão de Deus estaria sempre disponível para eles deveria ser um dos elementos fundamentais para produzir uma vida sem medo e sem o peso excessivo da culpa.


A quarta noção que Jesus apresenta é a de que os seus discípulos deveriam sempre orar para que Deus os livrasse do Maligno, das forças que se opõem ao Reino dos Céus, das forças que tentam impossibilitar a prática correta da justiça conforme o Reino dos Céus. Nesse sentido, cabe o pedido à Deus para livrar seus filhos das lógicas malignas de viver e produzir relações uns com os outros. Pedir à Deus para livrar-nos do maligno não é eximir a nossa responsabilidade ética e moral das nossas ações, pelo contrário. É reconhecer que o mal é sedutor, o mal está em nós e nos é familiar. Para vencê-lo, precisamos mais do que boa vontade, precisamos da ação poderosa de Jesus em nós.


Assim, é na correta compreensão da justiça do Reino dos Céus que os discípulos e as discípulas de Jesus encontrariam forças espirituais para vencer o mal e não deixar-se capturar pelas lógicas maldosas que, no caso da comunidade mateana, estavam tomando conta daqueles que os perseguiam, desmerecendo suas crenças em Jesus Cristo como o verdadeiro Messias.


Conclusão


Um dos principais conceitos teológicos que podemos extrair da oração ensinada por Jesus é: A oração é um caminho, uma forma de ver o mundo. Portanto, só devemos orar se a nossa intenção for acessar o “mundo de Deus” a fim de materializa-lo no “nosso mundo”. Portanto, ela não é um conjunto de boas palavras repetidas ou uma mera prática cotidiana de espiritualidade.


Ao realizarmos qualquer prática de espiritualidade devemos faze-la, sempre, levando em conta o tipo de relação que estabelecemos com Deus: uma relação paterna; A nossa condição ontológica: somos humanos necessitados e incompletos; A forma como poderemos vencer a nossa maldade e a força do Maligno: seguir a justiça do Reino dos Céus. Devemos sempre orar a partir desses princípios. Portanto, devemos orar para buscar no Reino dos Céus o pão que nos alimenta existencialmente; para buscar o perdão que nos traz a paz e nos livra da culpa, nos conectando aos outros; e, por fim, para buscar a vitória sobre o maligno e sobre a nossa própria maldade.


A oração é experimentar Deus além das palavras. Palavras são limitadas demais para expressar essa experiência do divino. Jesus tanto sabe disso que nos recomenda fechar a porta do quarto e buscar a Deus em silencia. É no quarto a portas fechadas que a verdade intimidade é construída. Inclusive com Deus.